Proteção da personalidade frente ao uso de deepfakes e manipulações digitais

A ascensão das tecnologias de inteligência artificial trouxe avanços impressionantes na capacidade de gerar, editar e disseminar conteúdos digitais. Entre essas inovações, destacam-se as chamadas deepfakes, materiais audiovisuais criados por meio de inteligência artificial, capazes de simular, com alto grau de realismo, imagens, vozes e movimentos de pessoas reais.

Entretanto, apesar de inicialmente desenvolvidas para finalidades legítimas, tais tecnologias de manipulação digital — que criam versões falsas da realidade — rapidamente foram apropriadas para usos ilícitos, gerando conteúdos enganosos, ofensivos ou fraudulentos, e que desafiam profundamente os sistemas jurídicos em todo o mundo.

O que torna as deepfakes particularmente preocupantes não é apenas sua sofisticação técnica, mas também o impacto direto e gravíssimo no campo da personalidade, pois permitem a criação de conteúdos falsos nos quais a imagem ou a voz de uma pessoa são inseridas em contextos não consentidos.

Essas tecnologias, assim, rompem a barreira entre o que é real e o que é fabricado, criando representações falsas com aparência de verdade e, dessa forma, fragilizam o controle que o indivíduo exerce sobre sua própria identidade no espaço social.

Sendo assim, os direitos da personalidade, tais como honra, imagem, voz e identidade, assegurados pelo ordenamento jurídico brasileiro, sofrem novas formas de violação, comprometendo a autodeterminação do indivíduo, ferindo sua honra e afrontando sua integridade, tornando vulnerável algo que antes era considerado indisponível e inalienável.

A responsabilização civil nesses casos, em que o uso das deepfakes afronta diretamente os direitos da personalidade, envolve a aplicação dos artigos 186 e 927 do Código Civil. Tais dispositivos preveem que todo aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem comete ato ilícito e deve reparar o prejuízo.

Nesse mesmo sentido, o artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal, reforça a proteção à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, assegurando o direito à indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação.

Contudo, apesar do aparato normativo, há desafios práticos relevantes.

Um deles é a dificuldade de identificar os autores das deepfakes, muitas vezes protegidos pelo anonimato na internet ou localizados em jurisdições estrangeiras, o que dificulta a adoção de medidas judiciais.

Outro ponto crítico é a produção da prova técnica, pois muitas vítimas não possuem recursos para comprovar a adulteração sem a realização de perícia especializada.

Além disso, mesmo quando obtida a indenização, nem sempre é possível conter a propagação do conteúdo, gerando um dano potencialmente irreversível, sobretudo diante da velocidade com que as mídias digitais operam.

Nesse contexto, embora o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), em seu artigo 19, estabeleça que as plataformas digitais só podem ser civilmente responsabilizadas por conteúdos de terceiros quando, após determinação judicial específica, não tomarem as providências necessárias para a remoção do material ilícito, a doutrina e parte da jurisprudência vêm defendendo a necessidade de ampliar esse dever.

Diante da disseminação massiva e acelerada de conteúdos falsos e lesivos, como as deepfakes, cresce a expectativa de que essas plataformas assumam um papel mais ativo, adotando mecanismos preventivos de vigilância e respostas ágeis, mesmo antes de ordens judiciais formais.

Assim, busca-se um equilíbrio entre garantir a liberdade de expressão no ambiente digital e proteger efetivamente os direitos da personalidade, por meio de práticas que vão além do mero cumprimento reativo e contemplem também responsabilidades proativas.

De toda forma, para combater juridicamente as deepfakes, é necessária uma abordagem multidisciplinar. Não é suficiente aplicar leis de maneira isolada. É preciso unir expertise jurídica, conhecimento técnico em tecnologia da informação e estratégias preventivas para salvaguardar os direitos individuais.

O enfrentamento jurídico das deepfakes exige não apenas a evolução das normas e a modernização dos instrumentos processuais, mas também uma atuação coordenada entre operadores do direito, especialistas em tecnologia e as próprias plataformas digitais. Somente assim será possível mitigar os danos, preservar os direitos da personalidade e garantir que a integridade da identidade individual não seja comprometida pelas distorções da realidade promovidas pela inteligência artificial.

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