A inclusão do direito digital no Código Civil: resposta jurídica à revolução tecnológica

A evolução da inteligência artificial trouxe consigo possibilidades inéditas, como a criação de imagens hiper-realistas de pessoas, vivas ou falecidas, mesmo sem a anuência prévia. Esse avanço permite representar indivíduos em ações que jamais praticaram, promovendo produtos, ideologias ou situações às quais nunca se vincularam em vida.

Tal tecnologia, embora detentora de grande potencial criativo, envolve aspectos jurídicos e éticos importantes. A reprodução digital de pessoas, especialmente sem o devido consentimento, pode afetar diretamente a privacidade, a honra e a dignidade da pessoa humana, direitos estes resguardados pela Constituição Federal e pelo Código Civil brasileiro. No caso dos falecidos, a utilização da imagem repercute na proteção da memória e do legado pessoal, demandando atenção quanto à prevenção de usos indevidos, exploração econômica não autorizada e distorções da história individual.

Diante desses desafios, identificou-se a necessidade de atualização normativa para assegurar a proteção dos direitos fundamentais no ambiente digital. Com esse objetivo, a Comissão de Juristas responsável pelo projeto de reforma do Código Civil propôs a criação de um novo “Livro de Direito Digital”. A proposta reflete a compreensão de que os impactos tecnológicos, especialmente aqueles decorrentes da inteligência artificial, exigem regulamentação contemporânea, superando as categorias tradicionais do Direito.

O novo livro tem por finalidade organizar, de maneira sistemática, as principais questões jurídicas surgidas com o universo digital, dedicando especial atenção à regulamentação da criação de imagens humanas e buscando conferir maior segurança jurídica, bem como fortalecer a proteção dos direitos da personalidade e suprir lacunas normativas, diante das transformações tecnológicas.

No tocante à criação de imagens digitais humanas, a proposta de reforma estabelece requisitos específicos, entre os quais destaca-se a necessidade de consentimento informado, prévio e expresso. Para as pessoas vivas, o consentimento deve ser manifestado diretamente pelo titular da imagem. Já no caso dos falecidos, a autorização deverá ser concedida pelos herdeiros ou representantes legais, ou prevista de forma expressa em testamento, para autorizar ou vedar o uso da imagem.

Essa previsão normativa tem por objetivo preservar a dignidade e a memória dos indivíduos, impedindo que a tecnologia seja utilizada de maneira a desvirtuar a vontade ou a trajetória pessoal do representado. Em complemento, a proposta também disciplina o uso comercial de imagens digitais, exigindo autorização expressa para finalidades econômicas, salvo disposição legal em sentido diverso, com vistas a coibir práticas abusivas e assegurar a conformidade com os princípios éticos e jurídicos do ordenamento brasileiro.

A criação de um livro de Direito Digital dentro do Código Civil é apresentada como uma forma de sistematizar, de maneira mais clara, as novas relações jurídicas, como aquelas envolvendo plataformas digitais, atos notariais eletrônicos e patrimônio digital, buscando adequar o Código às dinâmicas contemporâneas, sem afastar-se dos seus fundamentos estruturais.

A modernização legislativa, ao acompanhar a evolução tecnológica, visa manter a unidade dogmática do Código e assegurar a sua estabilidade conceitual. Aliás, eventuais atualizações legislativas devem observar os princípios da técnica legislativa estabelecidos pela Lei Complementar nº 95/1998, privilegiando a clareza, a precisão e a funcionalidade do texto normativo.

Nesse contexto, a adaptação do Direito ao ambiente digital é conduzida de maneira cautelosa, preservando seus fundamentos essenciais, enquanto incorpora novas dimensões jurídicas decorrentes das transformações tecnológicas. Busca-se, assim, promover um equilíbrio entre inovação e segurança jurídica, reconhecendo a dinamicidade das relações sociais e econômicas na atualidade e a consequente necessidade de regulamentação adequada e eficaz.

Embora o projeto de reforma ainda esteja sujeito a análise e possíveis alterações, já é possível identificar a importância atribuída ao Direito Digital no processo de revisão do Código Civil, evidenciando a preocupação em atualizar a legislação para atender às demandas emergentes da sociedade contemporânea.

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