Quando a corrupção não vem do Estado: os riscos ocultos nas empresas

Quando se fala em corrupção, o imaginário coletivo costuma associá-la ao setor público: políticos, servidores, licitações e contratos públicos. Mas e quando a negociação de vantagens indevidas acontece entre agentes privados?

Imagine um gerente que, em vez de contratar o fornecedor mais qualificado, opta por aquele que lhe oferece um benefício pessoal. O contrato é assinado, o serviço é entregue — mas a escolha foi orientada por interesses próprios, e não pelo melhor interesse da empresa. Essa prática, embora comum em certos segmentos, continua sendo criminosa, ainda que não sob o título de corrupção.

No Brasil, a corrupção entre empresas privadas – aquela que acontece entre particulares, sem envolver o poder público – ainda não possui um crime específico na legislação penal. Em algumas situações extremas — como quando há falsificação de documentos ou outras fraudes para mascarar o conluio entre um funcionário e o fornecedor favorecido, por exemplo —, é possível enquadrar a conduta como estelionato.

No entanto, quando a vantagem indevida é oferecida e aceita sem qualquer engano explícito e até mesmo sem prejuízo financeiro direto, mas cujo critério para a tomada de decisão foi uma vantagem indevida oferecida ao colaborador responsável pela decisão de compra, dentro de uma relação comercial aparentemente legítima, a legislação penal se mostra silenciosa.

Há contrato, há entrega do serviço, mas também há uma decisão contaminada por interesses pessoais, o que, por si só, já pode caracterizar prejuízo direto à empresa, ainda que não de caráter financeiro. O colaborador não age em prol da organização, mas em causa própria — e é justamente esse desvio de lealdade que caracteriza um comportamento eticamente reprovável e danoso.

Essa prática mina a confiança entre empresas, distorce a livre concorrência e afeta a eficiência econômica. Quem perde é o mercado e, ao fim, toda a sociedade.

Por isso, desde 2015, diversos projetos de lei tramitam no Congresso Nacional para preencher essa lacuna jurídica. Os principais foram reunidos no Projeto de Lei nº 3.163/2015, que busca tipificar a corrupção privada como crime específico.

A última tramitação legislativa relevante sobre o tema ocorreu em outubro de 2024, quando a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania analisou a proposta quanto à sua constitucionalidade. O parecer, apesar de vetar alguns dispositivos, sinaliza de forma clara: o Poder Legislativo entende que é legítimo e necessário criminalizar a corrupção entre particulares.

Outro ponto relevante do parecer é a indicação de que o novo tipo penal deverá constar em legislação especial, fora do Código Penal, bem como que o delito será de ação penal pública incondicionada. Isso significa que, uma vez detectado o crime, o Ministério Público poderá iniciar a ação penal mesmo que a empresa prejudicada — a “vítima” — deseje encerrar o assunto internamente. Em termos práticos, a decisão de “perdoar” o autor do delito pela vítima não será suficiente para impedir a responsabilização penal pelo ato.

A pena proposta varia de dois a seis anos de reclusão. Com isso, o crime se afastaria das hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo — aquelas tratadas pela Lei 9.099/95 —, ou ainda afastaria o benefício da suspensão condicional do processo, restringindo o acesso a benefícios processuais mais brandos. Ainda assim, se o autor não for reincidente, reparar o dano causado e cumprir outros requisitos legais, poderá firmar um Acordo de Não Persecução Penal com o Ministério Público, evitando uma condenação.

Por fim, o substitutivo ao projeto afastou a possibilidade de responsabilização civil e administrativa da pessoa jurídica com base nesse novo tipo penal. Isso porque o ordenamento já prevê, no art. 36 da Lei nº 12.529/2011, mecanismos de responsabilização das empresas por condutas que afetem a concorrência de forma ilícita, como é o caso de práticas anticoncorrenciais.

A proposta segue o movimento internacional de repressão à corrupção no setor privado, previsto na Convenção da ONU contra a Corrupção, ratificada pelo Brasil em 2006. Esse movimento reflete a compreensão de que não se enfrenta a corrupção de forma eficaz sem considerar também os desvios praticados nas relações entre particulares.

Embora ainda não haja uma lei penal em vigor que tipifique a corrupção privada no Brasil, o avanço da tramitação legislativa sobre o tema exige atenção especial do setor empresarial. A eventual criminalização dessa conduta poderá representar um importante aliado à governança corporativa, ao reforçar a integridade nas relações comerciais.

Isso porque a imposição de sanções penais aos colaboradores envolvidos em práticas desleais tende a inibir condutas que priorizem interesses pessoais em detrimento dos objetivos da empresa, como o recebimento de vantagens indevidas oferecidas por fornecedores. Nesse cenário, a responsabilização individual contribui para fortalecer a cultura de compliance e garantir que decisões comerciais estejam alinhadas aos valores e à estratégia institucional da organização.

Sob a ótica do fornecedor, a nova lei tende a inibir práticas de “compra de decisões” por meio de vantagens pessoais oferecidas a colaboradores de empresas-clientes, o que reforça a segurança e a integridade nas relações comerciais.

Ao reconhecer que o ambiente privado também exige lealdade, transparência e responsabilidade, o legislador promove maior equilíbrio nas dinâmicas comerciais. Ignorar esse cenário pode expor empresas e indivíduos a investigações, ações penais e eventuais medidas cautelares, mesmo nos casos em que a relação comercial envolva entrega real de produtos ou serviços. Com a possível criminalização, condutas hoje tratadas de forma interna ou disciplinar poderão ser judicializadas, sem margem de controle por parte da empresa.

A responsabilidade penal, nesse contexto, deixa de ser uma hipótese remota e passa a integrar o campo de preocupações estratégicas na condução dos negócios privados, sendo essencial e estratégico contar com um suporte jurídico especializado para enfrentamento dessas situações.

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