Omissão na Carteira de Trabalho: entre a irregularidade trabalhista e o crime

Em um contexto de crescente rigor na fiscalização das relações de trabalho, é indispensável que gestores, administradores e profissionais da área jurídica estejam atentos aos possíveis reflexos penais de condutas historicamente tratadas apenas no campo trabalhista.

Um exemplo emblemático dessa mudança de paradigma é a criminalização da omissão de informações obrigatórias na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), conduta tipificada no artigo 297, § 4º, do Código Penal. O dispositivo prevê pena de reclusão de dois a seis anos para quem omite, nesse documento, dados como nome, remuneração, vigência contratual ou quaisquer outros elementos legalmente exigidos.

À primeira vista, essa omissão pode parecer uma infração administrativa ou trabalhista, passível de correção na Justiça do Trabalho. Contudo, a jurisprudência mais recente do Superior Tribunal de Justiça tem sinalizado que, em determinadas circunstâncias, a conduta pode extrapolar o campo infracional trabalhista e configurar crime contra a fé pública.

Foi o que se viu no julgamento do REsp 2.165.158/PA[1], no qual o Superior Tribunal de Justiça reconheceu justa causa para persecução penal em um caso de vínculo empregatício não anotado por mais de oito anos. Mesmo após o reconhecimento do vínculo e a regularização na esfera trabalhista, o STJ entendeu pela existência de relevância penal diante da gravidade e da reiteração da conduta. Como destacou o relator, “a ausência de registro do vínculo empregatício na CTPS constitui omissão penalmente relevante. A falta de anotação não configura mera infração administrativa.”

 

Ainda que a jurisprudência admita a tipificação penal nesses casos, vale destacar que o referido entendimento não é absoluto. Em outras oportunidades, o próprio STJ reforçou a necessidade de cautela, afirmando que a responsabilização penal exige mais do que a omissão formal. No REsp 1.252.635/SP[2], por exemplo, o Tribunal manteve o trancamento de uma ação penal contra uma empresária que, após o reconhecimento judicial do vínculo, realizou a anotação na CTPS e quitou as verbas devidas.

Para o Ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do caso, o crime exige a demonstração do dolo em falsear a verdade e da aptidão da conduta para comprometer a fé pública, defendendo que a interpretação do artigo 297, § 4º, deve necessariamente envolver a omissão de informação juridicamente relevante, associada à intenção do agente de enganar, o que caracterizaria hipótese de falsidade ideológica.

Essa mesma linha foi reafirmada no REsp 2117228/MT, em que o Ministro Ribeiro Dantas destacou que a criminalização da conduta não se resume à análise objetiva do fato, exigindo também a presença de elementos subjetivos, como o dolo e a potencialidade lesiva à fé pública. Tais posicionamentos evidenciam que a caracterização do crime depende de uma análise técnica e minuciosa do caso concreto, considerando elementos como a intenção do agente, a existência ou não de resistência à regularização e o impacto efetivo da omissão.

A jurisprudência sobre o tema ganha contornos ainda mais relevantes quando transposta para a dinâmica empresarial. No dia a dia das empresas, é comum que decisões de contratação sejam tomadas com base em modelos consolidados no mercado e orientações jurídicas plausíveis.

No entanto, escolhas contratuais adotadas com base em modelos amplamente utilizados — como a contratação de autônomos ou pessoas jurídicas — nem sempre resistem à requalificação judicial. Quando o vínculo empregatício é reconhecido, ainda que haja regularização e pagamento das verbas, a ausência de anotação na CTPS pode ser lida como indicativo de fraude, abrindo espaço para investigações criminais. O que começa como um conflito trabalhista pode, assim, migrar para a esfera penal.

Esse cenário revela um risco silencioso: a criminalização de práticas operacionais tomadas de boa-fé, mas reinterpretadas à luz de decisões judiciais posteriores. Nesse contexto, a atuação preventiva do advogado criminalista ganha papel estratégico, inclusive em fases precoces, como o recebimento de uma reclamação trabalhista ou a condução de auditorias. Avaliar desde cedo os potenciais reflexos penais de uma conduta é medida indispensável à proteção de empresas, sócios e gestores.

A integração entre as esferas penal e trabalhista inaugura uma nova lógica de governança jurídica, que ultrapassa a reparação financeira e incorpora o cuidado com a reputação institucional e a prevenção de responsabilizações desproporcionais. Em um cenário de crescente exposição, antecipar riscos é tão importante quanto enfrentá-los.

 

 


[1] STJ – REsp: 2165158, Relator.: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Publicação: Data da Publicação DJ 06/11/2024.

 

[2] STJ – REsp: 1252635 SP 2011/0107399-4, Relator.: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 24/04/2014, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/05/2014

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