Jornada excessiva e dano existencial: alerta para o passivo trabalhista

A jornada de trabalho é um dos pilares da relação empregatícia e, por consequência, objeto de constante atenção do ordenamento jurídico trabalhista. Não se trata apenas da delimitação do tempo destinado à atividade produtiva, mas da preservação de direitos fundamentais que asseguram ao trabalhador condições dignas de existência.

Em recente decisão, a 4ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, sediada no interior do Estado de São Paulo, manteve a condenação de uma transportadora ao pagamento de horas extras a um motorista de caminhão e, por maioria de votos, reconheceu a ocorrência de dano existencial decorrente da jornada excessiva.

O acórdão, relatado pela desembargadora Eleonora Bordini Coca, destacou que a rotina laboral imposta pela empresa violava o direito fundamental ao descanso e comprometia o convívio social e familiar do trabalhador, afrontando os limites previstos na legislação trabalhista e os direitos sociais assegurados pela Constituição Federal.

De acordo com a petição inicial, o empregado trabalhava das 3h às 20h, três vezes por semana, com apenas 30 minutos de intervalo, e até as 17h nos demais dias — padrão também exigido em dois sábados por mês.

Embora a empresa tenha apresentado registros de jornada divergentes, as testemunhas e o laudo pericial indicaram que houve manipulação tanto dos controles de ponto quanto do sistema de rastreamento de veículos, com o intuito de simular o cumprimento da carga horária legal, comprometendo a fidedignidade dos documentos e, consequentemente, tornando-os imprestáveis.

Ora, a manipulação de registros de ponto e de sistemas de rastreamento, além de fragilizar a defesa, pode ser interpretada como agravante na fixação do valor indenizatório, em razão da tentativa de ocultação da jornada real.

Diante da inconsistência das provas produzidas pela empregadora, prevaleceu a jornada descrita na inicial, sendo reconhecida a supressão dos intervalos e a extrapolação reiterada da jornada legal. Para a relatora, tal cenário restringia severamente o tempo destinado ao lazer e ao convívio familiar — ambos assegurados pelo artigo 6º da Constituição Federal —, além de expor o trabalhador a riscos à saúde física e mental. O colegiado fixou indenização de R$ 10 mil a título de dano existencial, cumulada com o pagamento de horas extras, adicionais noturnos e intervalos não concedidos.

O entendimento do TRT-15 acompanha precedentes do Tribunal Superior do Trabalho, que já destacou, em casos como o RR-20813-45.2016.5.04.0812 e o Ag-AIRR-1600-93.2017.5.12.0004, que jornadas excessivas em turnos ininterruptos e o trabalho contínuo sem descanso violam direitos fundamentais e afetam diretamente a dignidade do trabalhador, ensejando reparação.

Nesses casos, o dano existencial pode ser presumido (in re ipsa): basta a prova da jornada excessiva e da ausência de descanso para que surja o dever de indenizar, sem necessidade de comprovação de prejuízo específico, com fundamento nos artigos 1º, III, e 7º da Constituição Federal, no artigo 59 da CLT e na Convenção nº 1 da OIT.

Ressalte-se que o valor indenizatório não substitui o pagamento das horas extras devidas, mas visa compensar o prejuízo causado à vida pessoal e social do trabalhador — dimensão protegida pela ordem jurídica brasileira.

Esse contexto impõe aos empregadores o dever de revisar escalas e políticas internas, a fim de evitar violações a direitos fundamentais e, consequentemente, futuras responsabilizações judiciais. Mais do que cumprir formalmente os limites legais de jornada, é indispensável garantir que os trabalhadores possam usufruir de sua vida pessoal e familiar, sob pena de responsabilização civil e trabalhista.

Para as empresas, o risco vai além das horas extras. A imposição de rotinas abusivas pode gerar condenações cumuladas por dano existencial, com valores expressivos e forte repercussão reputacional. Políticas de gestão equilibradas e registros fidedignos de jornada são a melhor forma de prevenir passivos desse tipo.

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