Imagine que você comete um erro no trabalho e, ao descobrirem a situação, te oferecem um benefício por meio do qual você não será responsabilizado, desde que admita o que ocorreu. Porém, ao confessar, as regras mudam: para ter acesso ao benefício — ou seja, a uma segunda chance —, esperam que você também entregue seus colegas, mesmo que isso vá além do que você sabe ou pode dizer.
Foi exatamente esse o entendimento adotado por um juiz paulista ao negar a homologação de um Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). Para ele, a confissão do investigado só seria válida se viesse acompanhada da delação das demais pessoas envolvidas no crime. A negativa foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A correção, no entanto, só veio no Superior Tribunal de Justiça, em decisão publicada em abril de 2025, no âmbito do Habeas Corpus nº 714.507/SP.
O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) foi introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) e representa uma importante ferramenta da justiça penal negocial, que afasta o início de um processo criminal e, principalmente, o risco de condenação do acusado, mantendo a sua primariedade.
O acordo pode ser proposto mesmo antes do oferecimento da denúncia, desde que preenchidos os requisitos objetivos: o crime não pode ter sido cometido com violência ou grave ameaça, a pena mínima deve ser inferior a 4 anos, o investigado não pode ser reincidente e deve confessar formal e circunstanciada da infração penal. Assim, aceita e cumprida as condições acordadas, o processo é encerrado sem instauração da ação penal e, principalmente, sem a eventual condenação.
No caso concreto, o juiz de primeira instância considerou a confissão do investigado “parcial”, por não detalhar a conduta dos corréus. Para ele, o requisito da confissão formal e circunstanciada exigiria, também, a narrativa sobre a atuação de terceiros. O Tribunal de Justiça de São Paulo endossou esse entendimento. Já no Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Antonio Saldanha Palheiro corretamente afastou essa interpretação, pontuando que o artigo 28-A do Código de Processo Penal exige uma confissão pessoal e circunstanciada, mas não impõe a incriminação de terceiros. Confissão e delação são institutos distintos e, segundo o relator, confundi-los gera distorções graves no uso do acordo.
A decisão tem repercussão relevante, sobretudo no contexto dos crimes econômicos, nos quais o Acordo de Não Persecução Penal tem se mostrado um instrumento estratégico de resolução célere e eficaz. Ainda assim, não são raros os casos em que a sua aplicação é desvirtuada por interpretações ampliadas, que buscam transformar o acordo em mecanismo de obtenção de prova, deslocando-o de sua finalidade legal.
Esse precedente reforça a importância de uma defesa técnica combativa e estratégica, capaz de garantir que as prerrogativas legais do investigado não sejam relativizadas por entendimentos abusivos. O Acordo de Não Persecução Penal não pode ser convertido em ferramenta de coerção ou barganha desproporcional: trata-se de um instrumento legítimo de justiça negociada penal e precisa ser respeitado como tal.