Recuperação judicial de cooperativas: controvérsias e insegurança jurídica

As cooperativas ocupam uma posição estratégica na economia brasileira, com destaque nos setores do agronegócio, crédito e saúde. Organizadas por ramos de atuação e regidas pela Lei nº 5.764/1971, essas instituições têm como base o benefício mútuo de seus associados, promovendo práticas colaborativas e estimulando o desenvolvimento regional.

Apesar da crescente relevância, a aplicação da recuperação judicial às cooperativas permanece como tema de intensa controvérsia jurídica. Ademais, o tratamento diferenciado conferido aos seus créditos pela legislação suscita dúvidas quanto à aplicação prática da norma, gerando insegurança tanto para o setor cooperativista quanto para o mercado financeiro.

A controvérsia se intensificou após a reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falências, que passou a prever expressamente a possibilidade de recuperação judicial apenas para as cooperativas médicas, ou seja, aquelas que decorrem da associação de profissionais da saúde que se unem para oferecer serviços médicos aos seus associados. No entanto, apesar da expressa ressalva legal, o cenário ganhou complexidade com o ajuizamento de pedidos de Recuperação por grandes cooperativas atuantes em outros setores, bem como com a decisão do Superior Tribunal de Justiça que reconheceu a possibilidade de falência de cooperativas de crédito (REsp 1.878.653).

O Código Civil dispõe expressamente que as cooperativas são sociedades simples e, por consequência lógica, não podem submeter-se à recuperação judicial ou à falência, já que, nos termos da Lei nº 11.101/2005, apenas sociedades empresárias ou empresários individuais que exercem atividade econômica com finalidade mercantil podem acessar esses regimes, em razão da estrutura voltada à produção ou circulação de bens e serviços.

Quanto às cooperativas que operam planos de assistência à saúde, essas possuem dupla qualificação, sendo sociedades simples e, ao mesmo tempo, reguladas pela Lei nº 9.656/1998 que trata dos planos e seguros privados de saúde.

A partir das reformas legislativas mais recentes, parte expressiva da doutrina e da jurisprudência passou a admitir a aplicação da recuperação judicial às cooperativas operadoras de planos de saúde. A principal justificativa reside na expressiva relevância econômica e social dessas entidades, em linha com o entendimento que permitiu, por analogia, o acesso ao regime por associações, como os clubes de futebol.

Exemplos concretos ilustram a divergência jurisprudencial. A Unimed Manaus, durante a pandemia da Covid-19, requereu a recuperação judicial alegando sua importância para o sistema de saúde do estado, a relevância social e a dimensão econômica de sua operação. O pedido foi deferido em primeira instância e a decisão foi mantida pelo Tribunal, reconhecendo o interesse público envolvido e a necessidade de preservação da atividade econômica.

Por outro lado, o pedido formulado pela Unimed de Taubaté teve desfecho diverso. Alegando dificuldades financeiras decorrentes da evasão de beneficiários e do aumento das ações judiciais, inclusive entre cooperativas do próprio sistema, ela obteve uma decisão favorável em primeira instância. No entanto, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP reformou a sentença, sob o fundamento de que se tratava de sociedade simples, inapta ao regime da Lei nº 11.101/2005. Além disso, ressaltou-se que as operadoras de planos de saúde estão sujeitas a regramento específico, previsto no artigo 24 da Lei nº 9.656/1998.

No setor do agronegócio, as cooperativas de crédito têm desempenhado papel essencial no financiamento a produtores rurais, especialmente em regiões com menor presença de instituições bancárias tradicionais. A modernização do setor aumentou ainda mais essa demanda, elevando a importância dessas cooperativas como agentes de crédito.

Nesse contexto, a Lei nº 14.112/2020 introduziu novo dispositivo legal na Lei de Recuperação Judicial e Falência estabelecendo que “não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados.”

Embora a redação pareça conferir natureza extraconcursal aos créditos concedidos pelas cooperativas de crédito, ou seja, excluí-los do rol de obrigações sujeitas ao plano, o Poder Judiciário tem adotado postura cautelosa, avaliando cada situação de forma individualizada.

Um exemplo dessa abordagem foi o julgamento recente do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, em que se analisou o agravo de instrumento interposto pela Cooperativa de Crédito Sicredi Vale do Cerrado. A cooperativa pleiteava a exclusão de seus créditos do plano de recuperação judicial da devedora, sob a alegação de que se tratava de atos cooperativos. O pedido, no entanto, foi rejeitado, sob o fundamento de que os empréstimos ultrapassavam as atividades típicas da cooperativa, configurando operações bancárias convencionais. A decisão reforça o entendimento jurisprudencial que aproxima as cooperativas de crédito das instituições financeiras quanto à aplicação da LRF.

Diante desse cenário, é evidente a necessidade de aprofundar o debate sobre o enquadramento das cooperativas nos regimes de recuperação judicial, tanto na condição de devedoras quanto de credoras. A ausência de critérios objetivos para definir o que constitui ato cooperativo contribui para decisões judiciais divergentes, o que aumenta a insegurança jurídica para cooperados e credores.

Conclui-se, portanto, que a evolução legislativa e jurisprudencial sobre o tema deve buscar um ponto de equilíbrio. Isso poderá ser alcançado por meio de novas reformas na LRF ou da uniformização da jurisprudência, com vistas a assegurar tanto a função social das cooperativas quanto a estabilidade do sistema econômico e a segurança dos agentes de mercado.

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