Por que negar a recuperação judicial às associações compromete a economia brasileira?

A crise econômica, ao contrário das categorias jurídicas, não distingue a classificação do CNPJ. Ela atinge empresas, fundações, cooperativas, associações — qualquer entidade que exerça, de forma organizada, atividade econômica. Em contrapartida, o sistema jurídico brasileiro ainda se apega a um modelo normativo que, ao privilegiar a forma em detrimento da substância, restringe o acesso à recuperação judicial a apenas alguns desses agentes.

Essa tensão entre realidade econômica e formalismo jurídico se cristaliza no julgamento atualmente em curso no Superior Tribunal de Justiça, envolvendo a Pró-Saúde Associação Beneficente, entidade que presta serviços hospitalares à população, com um passivo estimado em R$ 700 milhões, e que pleiteia a reorganização da sua estrutura financeira por meio da recuperação judicial.

A sessão da 4ª Turma do STJ, realizada em 4 de junho de 2025, recolocou no centro do debate jurídico um ponto essencial para a economia brasileira: a preservação de atividades que, embora não distribuam lucros, movimentam cadeias produtivas, geram empregos e prestam serviços públicos de saúde, educação e cultura. O julgamento, que até o momento se encontra suspenso, contou apenas com o voto do relator, Ministro João Otávio de Noronha, que foi contra a tese, pendendo de análise pelos outros quatro julgadores, o que exigirá mais do que uma leitura literal do artigo 1º da Lei 11.101/2005, e, sim, de interpretação da função social da atividade econômica que a própria lei busca tutelar.

A definição de empresário, prevista no artigo 966 do Código Civil, diz respeito àquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços. É precisamente o que fazem dezenas de associações civis no Brasil, especialmente nas áreas da saúde, educação e assistência social. A única diferença é que não distribuem lucros — mas isso não as torna menos produtivas, menos relevantes ou menos sujeitas a riscos sistêmicos.

Na prática, reconhecer o direito das associações aos benefícios das possibilidades de reestruturação judicial evita a espiral destrutiva da liquidação, aumenta a taxa de recuperação dos próprios credores e assegura continuidade de serviços cuja interrupção traz impactos sociais e fiscais bem maiores à sociedade.

Sem a proteção da recuperação judicial ou extrajudicial, associações como as que têm seu destino pendente de julgamento pelo STJ ficam expostas a execuções pulverizadas e à inevitável liquidação civil — um caminho que retira valor, inviabiliza empregos e interrompe serviços hospitalares que o próprio poder público não consegue substituir em tempo razoável.

A recuperação, nesse contexto, deixa de ser uma alternativa facultativa para se tornar, na prática, o único instrumento capaz de preservar a atividade essencial que tais entidades exercem.

É inegável que o artigo 1º da LRF menciona expressamente como sujeitos aptos o empresário e a sociedade empresária. Mas o artigo 2º da mesma norma — que elenca as hipóteses de exclusão — não contempla, entre os vedados, as associações civis. Essa ausência de vedação expressa é juridicamente relevante, uma vez que, se o legislador tivesse intenção de excluir essas entidades do regime recuperacional, poderia tê-lo feito de forma clara, como o fez com instituições financeiras, seguradoras e empresas públicas.

Mais do que uma disputa sobre técnica legislativa, trata-se de interpretar a legislação à luz de seus princípios estruturantes. O artigo 47 da própria Lei de Recuperação estabelece que o objetivo do processo é a superação da crise econômico-financeira, permitindo a manutenção da fonte produtora, dos empregos e da função social da atividade. Quando uma associação emprega centenas de trabalhadores, presta serviços públicos essenciais e movimenta cadeias de fornecedores, por que razão sua forma jurídica deveria excluí-la de um instituto criado para preservar exatamente esse conjunto de efeitos econômicos?

Ao longo dos últimos anos, a jurisprudência evoluiu para admitir produtores rurais, cooperativas e associações desportivas no regime recuperacional, tornando o sistema mais justo e aderente à realidade do mercado. Cooperativas médicas e fundações educacionais já obtiveram a garantia ao acesso, em precedentes do próprio STJ. A restrição atual acentua a desigualdade entre agentes que atuam no mesmo mercado, mas recebem tratamentos jurídicos distintos.

Impedir o acesso aos institutos de reestruturações judiciais penaliza justamente as associações que atuam de forma eficiente e transparente, direcionando seus recursos à continuidade de suas atividades e ao atendimento do interesse público.

O que está em julgamento no STJ é mais do que um caso concreto. Trata-se da definição de um modelo de Direito Concursal que reconheça a complexidade da economia brasileira e preserve atividades produtivas, independentemente de sua forma jurídica. A empresa que interessa ao sistema jurídico não é apenas a figura formal do contrato social, mas sim a atividade econômica que gera efeitos concretos na sociedade. Quando essa atividade é exercida por uma associação, negar-lhe o acesso à recuperação judicial compromete a própria finalidade da norma.

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