A transformação digital no varejo tem impulsionado modelos de venda cada vez mais integrados, em que a experiência do consumidor ultrapassa as barreiras entre o físico e o digital. Nesse contexto, o omnichannel, modelo de estratégia de negócio que conecta todos os canais de atendimento e venda de uma empresa, deixou de ser apenas uma tendência para se tornar uma exigência de mercado: consumidores compram pelo site e retiram na loja, trocam produtos adquiridos no aplicativo diretamente no balcão e esperam conveniência, agilidade e uma experiência sem interrupções, independentemente do canal escolhido.
Mais do que operar em múltiplos canais, a estratégia omnichannel pressupõe a integração plena entre esses canais, com unificação de estoques, políticas comerciais, fluxos de atendimento, logística, análise de dados, atendimento pós-venda e até mesmo logística reversa. O objetivo é oferecer ao consumidor uma experiência fluida, personalizada e consistente, independentemente do canal inicialmente escolhido. A Fundação Getúlio Vargas (FGV)[1] compartilhou um estudo da Harvard Business Review segundo o qual consumidores de organizações que utilizam a estratégia omnichannel gastam até 10% mais nas plataformas online e demonstram maior fidelização em relação às marcas, quando comparados a empresas que utilizam outros modelos.
O que muitas vezes passa despercebido na experiência de compra do consumidor é que, por trás de uma estratégia omnichannel eficiente, há uma estrutura contratual complexa, que precisa ser cuidadosamente desenhada para evitar riscos jurídicos e garantir a coerência operacional. Embora invisível para o público final, essa estrutura é essencial para proporcionar a experiência fluida e integrada esperada pelos consumidores.
Nesse cenário, o Direito Contratual assume um papel central nessa engrenagem, à medida que empresas operam em múltiplos canais e se relacionam com uma variedade de parceiros, como plataformas de e-commerce, centros de distribuição, operadores logísticos, fornecedores de tecnologia e redes franqueadas. Cláusulas contratuais adequadas asseguram que todos atuem com regras uniformes e transparentes, prevenindo conflitos e permitindo que as responsabilidades sejam rapidamente identificadas e solucionadas.
A ausência de uniformidade e estrutura dos contratos pode gerar conflitos operacionais, sistêmicos e até jurídicos. Entre os principais problemas, destacam-se políticas divergentes de troca e devolução, responsabilidades indefinidas por falhas na entrega, falta de acordos de níveis de serviços com fornecedores, tanto para os bens quanto para os serviços oferecidos, em meio físico ou digital, ou acordos de níveis de serviços dissonantes das ofertas aos consumidores finais, inconsistências no atendimento ao consumidor, bem como qualquer outro tipo de falha entre canais integrados.
Do ponto de vista contratual, os principais desafios do modelo omnichannel envolvem a mitigação de riscos decorrentes da interdependência entre os agentes da cadeia. Esses riscos precisam ser antecipados e devidamente alocados por meio de uma matriz de risco da operação como um todo, que deve ser refletida em cláusulas contratuais específicas que definam claramente as obrigações, limites, penalidades , compensações e responsabilidades operacionais e jurídicas entre fornecedores, parceiros logísticos e plataformas digitais e, principalmente, a integração tecnológica, de forma que os sistemas sejam compatíveis e operem em sinergia.
Outro aspecto importante está relacionado aos contratos firmados com marketplaces e plataformas digitais. Embora a mera presença em um marketplace não configure automaticamente uma operação omnichannel, esse canal torna-se parte essencial da estratégia quando integrado plenamente aos demais canais da empresa (lojas físicas, site próprio e aplicativos). Nesse cenário, é fundamental revisar e ajustar os contratos com as plataformas, garantindo cláusulas específicas sobre logística integrada, cancelamentos padronizados, prazos claros para pagamentos, responsabilidades civis definidas, regras sobre gestão de publicidade e compartilhamento de dados em conformidade com a LGPD. Uma atuação jurídica estratégica é decisiva também para negociar condições equilibradas, incluindo previsão de multas por descumprimento contratual, níveis mínimos de serviço (SLA) e cláusulas de compensação financeira por falhas atribuíveis à plataforma, reduzindo riscos e garantindo uma experiência consistente ao consumidor.
Em operações maiores, como redes de franquia ou grupos com múltiplas unidades, o desafio contratual se intensifica. A solução envolve estruturar contratos de franquia e acordos operacionais com cláusulas específicas que obriguem todas as unidades a adotarem políticas uniformes e compatíveis com o modelo omnichannel. Cláusulas relacionadas ao uso compartilhado de estoques, logística integrada, treinamentos obrigatórios sobre políticas internas e requisitos técnicos mínimos para integração tecnológica são exemplos concretos que resolvem problemas operacionais comuns.
Além disso, a crescente importância da regulamentação dos contratos digitais demanda atenção especial nesse modelo. Com a provável alteração do Código Civil para regulamentar expressamente os contratos eletrônicos, ganha relevância a adoção de cláusulas sobre assinatura digital, integridade documental e reconhecimento legal dos meios de autenticação utilizados, sendo certo que esses pontos são sensíveis em modelos omnichannel que operam com plataformas interligadas, aplicativos e meios de pagamento integrados. Essas cláusulas garantem segurança jurídica aos negócios firmados eletronicamente e protegem as empresas contra questionamentos futuros, trazendo regras claras para a importante gestão de tais contratos.
Por fim, é importante destacar que a implementação de estratégias omnichannel exige, além de investimento em tecnologia e processos, um forte suporte jurídico especializado que apoie não só na estruturação da operação, mas também na gestão desses contratos estratégicos. A revisão, adequação e padronização dos contratos firmados com parceiros, fornecedores e prestadores de serviços são fundamentais para assegurar conformidade legal, minimizar riscos e sustentar o sucesso do negócio no longo prazo, bem como viabilizar a gestão de todo o ecossistema de contratos de forma uniformizada.
A adoção de um modelo omnichannel é, sem dúvida, um movimento de modernização e expansão. No entanto, para que essa jornada seja sustentável e segura, é indispensável que a base contratual seja robusta, coerente e atualizada com os desafios jurídicos do ambiente digital.
[1] https://portal.fgv.br/artigos/omnichannel-gestao-integrada