A Lei 11.101/2005 (LRF) permite a recuperação judicial e extrajudicial a empresários e sociedades empresárias, excluindo expressamente instituições financeiras, cooperativas de crédito e seguradoras. Essa limitação é fundamentada no conceito de empresário, definido pelo art. 966 do Código Civil, que descreve empresário como aquele que “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou para a circulação de bens ou de serviços”. Já a sociedade empresária é “a atividade organizada e exercida profissionalmente dirigida para satisfazer as necessidades do mercado, restringindo o acesso de outras entidades ao regime recuperacional.
Mesmo com essa restrição legal, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2021, passou a permitir que associações civis ingressassem com pedidos de recuperação judicial, como no caso do Grupo Metodista e da Maternidade de Campinas, mas, em 2024, a Terceira Turma consolidou a interpretação mais restritiva, vedando a possibilidade para fundações privadas.
O relator do caso, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, argumentou que, apesar de algumas dessas entidades terem relevância econômica, elas não são sociedades empresárias e, portanto, não podem acessar o benefício da recuperação judicial.
O Ministro fundamentou, em seu voto, que flexibilizar tal instituto às fundações privadas poderia gerar diversos impactos negativos, como: (i) causar riscos concorrenciais de extremo impacto, uma vez que as fundações já usufruem de benefícios como a imunidade tributária; e (ii) gerar insegurança jurídica, considerando que todo agente que celebrou contrato com fundação privada não calculou o risco de recuperação extrajudicial ou judicial.
Além disso, ele ressaltou que a flexibilização da Lei 14.112/2020 ampliou o alcance da recuperação judicial para cooperativas médicas e produtores rurais, mas não estendeu esse benefício para fundações e associações civis. Para ele, essa exclusão demonstra que o legislador não teve a intenção de incluir essas entidades no regime recuperacional, reforçando a interpretação restritiva da lei.
No entanto, esse debate já é antigo e amplamente discutido na doutrina e jurisprudência, o que significa que a insegurança jurídica não é novidade. Além disso, a recuperação judicial poderia ser uma alternativa mais eficiente do que simplesmente direcionar tais entidades para a insolvência generalizada, garantindo uma solução mais organizada para sua reestruturação financeira.
Por outro lado, um argumento que segue relevante nos debates diz respeito à questão tributária, já que associações civis e fundações privadas contam com incentivos fiscais e imunidades. No entanto, na lei não há distinção no que concerne às empresas que possuem esses benefícios e as que não possuem em relação à possibilidade de pedido de recuperação judicial, pois, se assim fosse, tal premissa se aplicaria às sociedades empresárias.
Diferentemente do retrocesso do entendimento do STJ de 2021 para cá, a tendência internacional é ampliar a legitimidade para reestruturação empresarial. O modelo brasileiro inspirou-se inicialmente no sistema francês, que era restritivo, mas, ao longo dos anos, diversos países abandonaram essa abordagem. O ordenamento jurídico norte-americano, por exemplo, permite que até mesmo pessoas físicas recorram ao sistema recuperacional por meio do Bankruptcy Code, com diferentes artigos (chapters) para atender situações específicas.
Já no Brasil, a recuperação judicial enfrenta grandes desafios, especialmente para microempresas e empresas de pequeno porte, que têm pouca adesão devido às regras rígidas, demonstrando a falta de flexibilização do sistema recuperacional. Isso também impacta diretamente as fundações e associações, que permanecem excluídas do regime recuperacional por não exercerem atividade econômica com fins lucrativos.
As últimas crises financeiras mostram que o recesso econômico não atinge apenas empresas, reforçando um cenário de necessidade de modernização da LRF, ampliando o acesso à recuperação judicial e criando mecanismos mais eficazes de reestruturação financeira. Isso não apenas alinharia o Brasil às tendências internacionais, mas evitaria que entidades de grande relevância social e econômica fossem obrigadas a fechar as portas. Afinal, garantir a continuidade dessas instituições não é apenas uma questão jurídica, mas uma necessidade para toda a sociedade.
Se o objetivo da recuperação judicial é preservar atividades produtivas e evitar colapsos que prejudiquem a sociedade, como disposto no artigo 47 da própria Lei, por que dificultar que entidades sem fins lucrativos, como hospitais, universidades e outras entidades de interesse público, tenham essa chance?
Logo, considerando que o Direito deve refletir as necessidades dinâmicas da sociedade, é fundamental reavaliar a restrição imposta pela Lei 11.101/2005 quanto ao acesso das entidades sem fins lucrativos ao regime de recuperação judicial. A atual controvérsia jurisprudencial, demonstrada pelas divergentes decisões da Terceira e Quarta Turmas do STJ, indica claramente a necessidade de uniformização de entendimento por parte da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça.
Tal uniformização não apenas trará segurança jurídica às relações envolvendo associações e fundações privadas, mas permitirá avaliar com clareza se o instituto da recuperação judicial deve ser aplicado a essas entidades, especialmente quando desempenham relevante função econômica e social. Ao fazê-lo, o STJ cumprirá sua função de adequar a interpretação da lei à realidade socioeconômica atual, assegurando que a legislação sobre insolvência empresarial atenda eficazmente ao propósito para o qual foi criada: preservar atividades que beneficiam diretamente a coletividade e impedir colapsos que prejudicam a sociedade como um todo.